Tudo aconteceu tão rápido...
Apesar d’ele saber que era impossível, aquele parecia ser mais um dia como outro qualquer. Nenhuma novidade, nada fora do comum (como se o ‘comum’ fosse algo mensurável).
Mas tudo aconteceu tão rápido... quando se deu conta, já havia sido atingido, forçado a girar nos calcanhares, sendo a queda algo inevitável. Se Newton e Murphy estivessem ali, com certeza estariam apontando o dedo para sua cara enquanto gritavam efusivamente “ninguém escapa das leis, rapaz!”
Estendido sobre o asfalto escaldante, o único calor que sente, porém, é o do líquido viscoso que se esvai pelos seus cortes, impregnando-se em sua pele suada, formando pequenas poças brilhantes de um aroma repulsivo.
Começa a sentir frio.. não aquela sensação gélida relacionada à baixas temperaturas.. não, é uma sensação de vazio, um calafrio persistente percorrendo, vagarosamente, sua espinha de cima a baixo e estagnando em seu estômago.
Deve ser assim que as pessoas se sentem quando estão nessa situação, pensou ele. Um turbilhão de pensamentos fragmentados começou a invadi-lo.
Se esse era seu último instante, se pôs, então, a pensar em quem sentiria a sua falta. Talvez a Laura?! Pouco provável, já que não se viam há mais de 2 anos. E seu círculo de amigos?! Thomas, Marcelo, Eduardo... talvez não de todo. Afinal, como dizia Victor Hugo, eram corajosos sem dúvida... mas fidelidade era algo que sua amizade, provavelmente, não inspiraria numa hora como essa.
E o que seria de seus pais?! Como suportariam passar por isso?! Seu pai, militar aposentado, amargo e ranzinza por experiência de vida, certamente, diria “e o que mais poderia se esperar? Nascido de um acidente, só poderia morrer do mesmo modo”. Sua mãe, reservada por apelido, enlutaria-se por uma semana, choraria uma vez ou outra e logo esqueceria.
Lançou um olhar a sua volta. Na verdade, nem meia-volta. Com uma das bochechas colada ao solo, ficava impossível um ângulo de visão maior que 120º. Diante de tantos rostos desconhecidos, com suas impressões que iam da indiferença a curiosidade mórbida (óbvio!), balbuciou um inocente “me desculpem”, porém, isso só lhe fez recordar dos versos de Chico Buarque, que ele, apenas por não ter nada mais urgente por fazer, começou a murmurar:
“E flutuou no ar como se fosse um pássaro
E se acabou no chão feito um pacote flácido
Agonizou no meio do passeio público
Morreu na contramão atrapalhando o tráfego”
Logo vieram a mente as lembranças de seu avô.. a velha vitrola onde ouvia Chico Buarque numa repetição exaustiva.. a precária máquina Olivetti, da qual saiam sons quase tão belos quanto dos discos de vinil.. as vezes em que sentava na calçada, junto ao seu avô.. olhos fixos no horizonte e ouvidos atentos as maravilhosas histórias que ele tinha para contar.
De repente, ao longe, ele ouve um sussurro a lhe chamar... seria Deus, ou algum de seus intermediários?! Supostamente, não.. Deus era um luxo para o qual ele nunca se sentiu tentado a dedicar muito do seu tempo. Apreciava, era verdade, toda a mitologia construída a sua volta: céu, inferno, reencarnação, pecados, arrependimentos... mas acreditar, isso era assunto para adultos.
- Ei, Edgar.. Tá tudo bem?! Deixa eu te ajudar a levantar – disse Thomas, seu melhor amigo, estendo-lhe a mão.
- Obrigado... cof, cof...
- Por que você ficou tanto tempo caído? No que estava pensando?
- Nada em especial... apenas nas prerrogativas de uma morte anunciada – exclamou Edgar, averiguando se estava tudo nos devidos lugares.
- Eu sabia! Você e seus pensamentos funestos! Melhor voltarmos ao jogo.. acho que ainda podemos reverter o placar – disse Thomas, se afastando do amigo.
- Funestos?! – indagou Edgar. E, desolado, completou num sussurro - Até a morte idealizada perdeu seu direito de existência.
H (bons tempos)
¹ Qualquer coincidência com o título do livro "Crônicas de uma morte anunciada", de Gabriel Garcia Marquez, acreditem, não é mera...
² Conto escrito, originalmente, em 19 de janeiro de 1999, em homenagem ao 190º aniversário de nascimento do escritor Edgar Allan Poe.