quarta-feira, 31 de outubro de 2012

Obituário


Sinto falta. Muita falta de como a vida era, 12, talvez 13 anos atrás. Ela não é injusta, como muitos dizem. Possui, na verdade, uma face vil e misteriosa que, para aqueles de pensamento pacatamente inclinado para o lógico e limitado, fica mais fácil e é muito mais reconfortante rotulá-la maldita do que bendizê-la. Nada é culpa, tudo é conseqüência.

Da mesma maneira, a vida também não é cruel. Crueldade é substantiva-la em excesso, como numa tentativa utópica de reescrever a fábula de Pinóquio e Geppetto. Vida deveria ser, frequentemente, mais verbo e adjetivo.

Confesso que é difícil. Extenuante, às vezes. O impossível não é peça de coleção, mas vocábulo de uso desregrado. Até um coração de pedra pode sangrar. Sim, pode.

Você tem o direito de se arrepender de muitas coisas, atos e ações. Contudo, nem meio mundo e três oceanos são obstáculos plausíveis para engavetar-se à comiseração. Acordado também se sonha. Não raro, imperceptivelmente. Tempo é invenção do ser humano, esse animal irracional que, mesmo podendo falar, prefere por inúmeras vezes o silêncio. E se arrepende quando o céu já está estrelado. Distância são grades autoimpostas, amarras invisíveis de uma consciência subconsciente.

Sinto falta do início. O fim, já conheço muito bem. E seu sabor na boca, impregnado entre meus dentes é nauseante. Agridoce.

De herança, aquela que realmente vale, ficaram as imagens. Cenas em um devaneio reprisado. Já desbotadas, esbranquiçadas nas pontas, levemente turvas pelo restante do quadro. Fazer o quê?! O projetor está velho e o restaurador está morto.. por dentro.

E se há algo que se possa contar, que valha a pena ser repassado, é que a vida, esse adjetivo fugaz e lisonjeiro, perdeu um pouco de graça. Seu foco, a partir de agora, minguará em qualidade. O brilho se perdeu, de repente.

E pela segunda vez, minha despedida foi encenada com um objeto inanimado. Sentirei falta das palavras mortas na ponta da língua e dos sentimentos semicerrados. De escrever cartas que nunca serão lidas, ensaiar encontros de reconciliação, temer previamente por tapas que não serão mais deferidos.

A vida, minha vida na verdade, foi outra com você. E será outra sem. Insossa, opaca e assustadoramente previsível. Foi-se a lima que arredondou meus cantos. Entretanto, como diz um ditado italiano, que meu avô repetia sempre, “quem nasce quadrado não morre redondo”.

Vida não é culpa. É consequência. Agora eu sei. Você, sempre soube. Fim.

“A meia distância

Claridade infusa na sombra,
treva implícita na claridade?
Quem ousa dizer o que viu,
se não viu a não ser em sonho?

Mas insones tornamos a vê-lo
e um vago arrepio vara
a mais íntima pele do homem.
A superfície jaz tranqüila.

(Carlos Drummond de Andrade, ‘Como encarar a morte’, 1984)