domingo, 19 de fevereiro de 2012

Limen Vitae

Trecho de diálogo ocorrido em 17 de dezembro, num café na região da Av. Paulista:


- E então..?

- Então o quê?!

- O que você queria me falar? Foi você quem me chamou aqui, não foi? Disse que tinha algo importante para dizer – ela fez uma pausa para saborear o café que tinha acabado de chegar.

- Eu acho que cheguei naquele ponto – disse ele enquanto apreciava a rotina alheia pela janela – Aquele ponto que
ele tanto comentava..

- Limen vitae* – completou ela.


Ele não confirmou, mas ela sabia que estava certa. O movimento rápido do pomo-de-Adão e o suspiro prolongado após a pronuncia dessas palavras só veio corroborar. Ela era uma ótima observadora. Não gostava de se gabar, é verdade. Mas estava ciente de que os outros também a julgavam como tal.


- Você se lembra como
ele era?

- Altura mediana, bonito, um tanto arrogante quando versava sobre um assunto de seu domínio. Autodestrutivo, às vezes. Uma pessoa acima da média.

- Não estou falando física ou psicologicamente. Perguntei se você se lembra como era
estar na presença dele.

- Ah, isso.. – ela parou para pensar um pouco – Eu, particularmente, me sentia estranha. De uma maneira boa, claro!
Ele tinha um magnetismo e uma atitude que me fazia sentir capaz de tudo. Como uma super-heroína, sabe?!

- Sei.. comigo era a mesma coisa.


Os dois ficaram um minuto em silêncio. Ele observava, distraidamente, o movimento matutino fora do café. Evitou encará-la não por medo, mas por saber da capacidade que essa tinha em ler no olhar das pessoas qualquer indício de intempérie emocional. Ela, por sua vez, enquanto formulava algo apropriado para dizer, resolveu brincar com os pequenos farelos do pão que havia comido minutos atrás.


- Olha, eu sei que algo está lhe preocupando. E até sou capaz de imaginar o que seja. – ela o encarou por um longo instante – Mas antes vou lhe dizer uma coisa: você não chegou ao tal ponto...

- Como você pode ter tanta certeza dis... ?

- Por favor – ela elevou a mão espalmada em sua direção – não me interrompa novamente, ou vou lhe dar um tapa aqui mesmo! Conheço você há mais de 12 anos.. e
ele, antes mesmo de você conhecê-lo. Acho que isso basta como resposta. – disse, apontando o dedo em riste – Nem você nem ele chegaram ao tal Limen Vitae. Se ele lhe explicou bem, Limen Vitae é um estado de espírito em que a pessoa não se sente ligada a ninguém, permanecendo isolada emocionalmente de qualquer outro ser vivo com quem mantinha relações. Sem lembranças, sem remorsos, sem sentimentos. Um completo vegetal.

- Eu sei disso – defendeu-se – E é assim que me sinto agora.

- Não! Não e não! E vou provar:
ele, em algum momento, lhe tratou como um estranho? Deixou de lhe ajudar ou se importar com você? Não! – ela se antecipou com um soco na mesa – Da mesma forma, você sempre teve a mim. Apesar da distância, é claro, mas nunca deixou de atender minhas ligações, responder minhas cartas e se importar com meus problemas..

- Acho que você não me entend... – o barulho do tapa abafou o restante da palavra.

- Não diga que eu não avisei, querido. Eu ainda não acabei! A burrada que aquela outra fez a você foi horrível e imperdoável. Ponto. Mas não use a atitude dela como um esconderijo, por favor. Você não é tão frio quanto julga ser. Você é uma pessoa que se apaixona facilmente. Só isso.

- Era – disse ele com o rosto entre as mãos, prevenindo-se da possibilidade de outro tapa.

- Olhe para mim, cabeçudo! – pediu duramente – Não para o meu decote, nem para a minha testa! Olhe aqui, nos meus olhos. O que lhe aflinge? Me diz o nome desse incômodo.

- Não é incômodo, Beka. É só medo, eu acho. – continuou, depois de uma pequena pausa - Eu gosto dela. Muito. Mas sinto que ainda estou apaixonado pela outra..

- Você sempre foi assim, né? Não consegue se desprender totalmente de alguém, mesmo quando a decisão pelo fim cabe a você. – ela soltou um longo suspiro – Preste atenção, porque não vou repetir: você não está apaixonado pela outra. Você está alimentando uma fantasia! Vocês dois não são mais os mesmos. – envolveu as mãos dele entre as suas – Siga sua vida, querido! Não viva de ilusões e desejos fictícios. Apenas.. – parou para pensar melhor numa conclusão – viva, ok? Deixe as coisas acontecerem, sem planejamento prévio.

- Ok. Vou tentar.

- Promete?

- Só se você me contar como está seu casamento – disse ele, já abrindo um sorriso.

- Ah, vai se foder! – e afastou as mãos dele para longe enquanto os dois caiam no riso.


* Limen Vitae era um conceito defendido por essa pessoa. Depois de assistir “No limiar da vida” (Nära Livet), do diretor Ingmar Bergmar, e combinar com algumas leituras suas de Platão e Socrátes, ele formulou uma ‘tese’ de que, em algum momento de nossas vidas voltamos ao princípio emocional de desligamento e solidão, como nos poucos instantes entre o corte do cordão umbilical e o primeiro contato entre mãe e filho, ao acontecer novamente, em idade adulta.


H (decisão)

Imagem retirada daqui

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